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Tópico 01479
Sambaquis são formados pelo descarte de conchas e de restos de animais marinhos, acumulados ao longo de centenas ou de milhares de anos. Tais formações foram construídas entre 8 mil e 1 mil anos atrás por povos que viveram no litoral da Mata Atlântica. A região tradicionalmente é vista como periférica aos primeiros centros de produção de alimentos na América do Sul, quais sejam os Andes e a Amazônia.
Mas um novo estudo apresenta fortes evidências de que as sociedades que estariam por trás da construção dos sambaquis não eram caçadores-coletores comuns. O trabalho indica manejo ou cultivo de vegetais e uma dieta rica, com elevado consumo de carboidratos.
Resultados do estudo, feito por pesquisadores do Brasil e do Reino Unido, foram publicados na Royal Society Open Science. O trabalho foi feito a partir de dados coletados nos sambaquis Morro do Ouro e Rio Comprido, em Joinville (SC).
"O alto consumo de alimentos ricos em carboidratos nesses dois sambaquis sugere que o sustento de suas populações estava baseado em uma economia mista. Uma economia que aliava a pesca e a coleta de frutos do mar com alguma forma de cultivo de plantas", disse o bioarqueólogo Luis Nicanor Pezo-Lanfranco, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), primeiro autor do artigo, cujo estudo teve apoio da FAPESP.
Pezo-Lanfranco desenvolveu o estudo no Laboratório de Antropologia Biológica do IB-USP, liderado pela professora Sabine Eggers em parceria com arqueólogos da University of York no Reino Unido e do Museu do Sambaqui de Joinville (SC).
De acordo com a visão tradicional da Arqueologia pré-histórica na América do Sul, os caçadores-coletores que habitavam os sambaquis proveriam seu sustento primordialmente a partir da exploração de recursos marinhos. Tal ideia começou a ser contestada nos anos 1980, a partir do surgimento de evidências dando conta de que teria existido nos sambaquis uma economia muito mais diversificada.
A alta frequência e o grande volume de alguns sambaquis na costa sul do que é hoje o Brasil, contendo centenas de enterramentos humanos, são consideradas evidências da alta densidade populacional, de arquitetura monumental e da complexidade social dos sambaquis durante o Holoceno Médio e Tardio.
Um dos principais indícios a sugerir a ocorrência de uma dieta mais variada nos sambaquis foi a constatação da existência de cáries nos dentes dos esqueletos enterrados, interpretada como decorrência direta do elevado consumo de carboidratos.
Outra pista importante foi a identificação – graças a escavações arqueológicas – de restos de possíveis culturas incipientes, como tubérculos (inhame e batata-doce), milho, palmeiras e anonáceas (a família da fruta-do-conde e da graviola).
O novo estudo tem base em evidências de patologia oral e em resultados isotópicos extraídos diretamente dos esqueletos. As análises revelaram o consumo inesperadamente alto de recursos vegetais, ou seja, de carboidratos, entre as populações que habitaram o sambaqui Morro do Ouro do litoral norte de Santa Catarina durante o Holoceno Médio (de 8 mil a 4 mil anos atrás).
O litoral norte do estado de Santa Catarina tem a maior concentração de sambaquis da costa brasileira. Centenas de locais estão distribuídos em torno da baía de Babitonga.
“Realizamos análises de saúde bucal e isótopos estáveis em esqueletos humanos de enterramentos nos sambaquis do Morro do Ouro e Rio Comprido, para desvendar seu comportamento dietético durante o Holoceno Médio e Tardio”, disse Pezo-Lanfranco.
Morro do Ouro tem sido um local importante na discussão da densidade populacional, saúde e doença, e variabilidade cultural e dietética na costa da Mata Atlântica durante o Holoceno Médio.
Escavações arqueológicas feitas no local nos anos 1980 obtiveram grandes quantidades de vestígios de fauna terrestre e marinha, artefatos, estruturas domésticas e enterramentos humanos.
Os vestígios da fauna incluem diversas espécies de moluscos, peixes e mamíferos terrestres, como paca (Cuniculus paca) e porco-do-mato (Pecari tajacu). Também foram achadas ferramentas de pedra polida e restos carbonizados de frutos de palmeiras.
Segundo Pezo-Lanfranco, no total foram encontrados 116 enterramentos humanos em várias expedições arqueológicas entre 1960 e 1984.
A partir da datação do colágeno de ossos realizada por este estudo, sabe-se que o local foi ocupado entre 4,8 mil e 4,1 mil anos atrás, no Holoceno Médio. Análises de minúsculos restos de cálculo dentário realizadas por Verônica Wesolowski, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, em 2010 já tinham identificado amostras com batata-doce, inhame e frutos de palmeiras neste sítio.
No sambaqui Rio Comprido, distante 4 quilômetros, foram encontrados, na década de 1970, facas e machados de pedra polida, bem como 67 enterramentos humanos. O local foi ocupado durante duas fases. A fase denominada Rio Comprido 1 (RC1) se deu entre 5,6 mil e 4,3 mil anos atrás, no Holoceno Médio. A fase Rio Comprido 2 (RC2), entre 4 mil e 3,4 mil anos atrás, já no Holoceno Tardio.
Análises morfológicas feitas no estudo incluíram determinações de sexo e idade, bem como análises de patologia oral, de 70 indivíduos – 42 eram de Morro do Ouro (MO) e 28 de Rio Comprido (sendo 16 RC1 e 12 RC2). A análise de isótopos estáveis de carbono e nitrogênio foi realizada em 36 indivíduos: 20 (MO) e 16 RC (sendo 9 RC1 e 7 RCI2).
Utilizando 11 marcadores de saúde bucal, foram examinados 1.826 alvéolos e 1.345 dentes daqueles 70 indivíduos. Verificou-se que a maioria dos esqueletos analisada era do sexo masculino e tinha, em média, entre 20 e 49 anos no momento da morte.
“A frequência de cáries abrangeu entre 7,6% e 13,2% da amostra. É um resultado maior daquele que seria esperado entre grupos de caçadores-coletores ou pescadores e mais condizente com o padrão encontrado entre os primeiros fazendeiros do Holoceno Tardio de outras regiões como os Andes”, disse Pezo-Lanfranco.
Resultados obtidos com dentes de caçadores-coletores do Holoceno Tardio na Patagônia, por exemplo, têm frequências de cáries entre 3,3% e 5,19%. Já amostras de populações sedentárias mais recentes da Patagônia registram frequência de 10,17%.
O tipo de cárie variou consideravelmente entre os dois sambaquis, mas diferenças estatísticas foram observadas apenas para lesões cervicais (extraoclusais).
A frequência de cárie oclusal foi alta nos dois grupos, variando de 53,7% (MO) a 70% (RC1) dos indivíduos analisados. A maior frequência de cárie de esmalte foi registrada em RC1. Por outro lado, MO teve a maior frequência de cárie extraoclusal.
Lesões cariosas têm sido associadas a dietas ricas em carboidratos fermentados e açúcar. Dietas com elevada quantidade de alimentos cariogênicos têm uma frequência aumentada de cárie e de cavidades extraoclusais em superfícies lisas dos dentes.
“Portanto, é provável que as pessoas do Morro do Ouro tenham levado uma dieta mais cariogênica e refinada, por exemplo, por meio do cozimento dos alimentos, quando comparada à do Rio Comprido 2”, disse Pezo-Lanfranco.
Carboidratos processados
Estimativas alimentares baseadas na análise isotópica de carbono e nitrogênio obtidos do colágeno de dentes e ossos revelaram a composição da dieta. A principal fonte de proteína foi o peixe, variando de um mínimo de 33% nos indivíduos de Morro do Ouro e de cerca de 87% a 90% em Rio Comprido 2.
Essas estimativas sugerem que o consumo de vegetais forneceu a maior parte das calorias em Morro do Ouro (em média 48%), seguido por peixe (44%) e, em menor grau, por mamíferos terrestres (média de 8%), provenientes da caça.
Os resultados obtidos com o colágeno dos indivíduos de Rio Comprido 1 indicam a pesca como principal fonte de calorias na dieta (em média 48%), seguida de vegetais (44%) e mamíferos terrestres (7%).
Pezo-Lanfranco observa que esses são percentuais bastante similares ao verificado para Rio Comprido 2: peixe (48%), vegetais (42%) e caça (10%). Lembrando que todos os percentuais citados são valores médios, podendo haver grande variação individual.
A principal fonte de proteínas entre os indivíduos de Morro do Ouro foi peixe (58% a 84%). Essa também foi a principal fonte de proteínas em Rio Comprido 1 (66% a 85%) e RC2 (74% a 83%). São estimativas ligeiramente superiores aos valores observados para grupos caçadores-coletores pré-históricos e contemporâneos.
"A alta proporção de cáries crônicas ou estáticas entre os indivíduos de Rio Comprido 1 sugere uma dieta menos cariogênica em relação ao Rio Comprido 2 e Morro do Ouro. Está possivelmente associada ao conteúdo de fosfato e cálcio presentes em dietas de origem marinha. É o que se espera de um grupo de pescadores", disse Pezo-Lanfranco.
"Por outro lado, a maior frequência de cáries profundas e extraoclusais em Rio Comprido 2, e notadamente em Morro do Ouro, aponta para o consumo disseminado de carboidratos cariogênicos e processados, ou seja, plantas assadas ou cozidas. Em Rio Comprido e Morro do Ouro as evidências sugerem a existência de algum tipo cultivo de plantas, mesmo que incipiente”, disse.
O estudo aponta que a cárie cervical é o tipo mais comum de cárie extraoclusal em Morro do Ouro (29%) e tem sido associada ao consumo frequente de sacarose e amidos fermentáveis sólidos, altas concentrações de lactobacilos salivares e deposição de cálculo cervical com retração gengival.
"Frequências de cárie cervical em torno de 16% foram relatadas em caçadores-coletores do Pleistoceno do norte da África e interpretadas como os primeiros sinais de coleta e armazenamento sistemáticos de alimentos vegetais ricos em carboidratos", disse Pezo-Lanfranco.
Nos agricultores andinos, a cárie cervical foi atribuída ao consumo de bebidas fermentáveis preparadas com mandioca, milho e outros alimentos ricos em amido. Estudos anteriores mostraram que sacarose, amido com sacarose, frutos e dextrose de amido, em ordem decrescente, estimulam a produção de cárie de superfície lisa e cárie cervical, enquanto altas quantidades de maltose e amido levam preferencialmente à cárie cervical.
"As dietas em Morro do Ouro eram provavelmente mais ricas em carboidratos cariogênicos do que aquelas em Rio Comprido e comparáveis com dietas de alguns povos agricultores da antiguidade”, disse Pezo-Lanfranco.
Os índices de desgaste dentário em Rio Comprido e Morro do Ouro foram os mais baixos entre os vários grupos de sambaqui estudados em outros locais. A dieta em Rio Comprido 2 parece ter sido mais abrasiva do que em Morro do Ouro. Em Morro do Ouro foram registrados vasos de pedra e pedras de moagem que podem ter sido utilizados na fabricação de farinha. Uma análise microscópica do fundo destas vasilhas ainda está pendente.
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Esta pesquisa coloca os neotrópicos no mapa dos centros mundiais de produção de alimentos da antiguidade. O litoral da Mata Atlântica tem sido amplamente periférico nessa narrativa, apesar de sua biodiversidade única e dos registros arqueológicos da densa ocupação humana desde o Holoceno Médio. O novo estudo desafia tal visão tradicional. Reunimos evidências bastante convincentes da ocorrência de dietas ricas em carboidratos entre os caçadores-coletores da região de Joinville há 4.500 anos. A confirmação de que se trata de sistemas de produção de cultivares e o estado de domesticação dessas espécies aguardam estudos futuros”, disse Pezo-Lanfranco.
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