Imagem ilustrativa - Praia de Maresias |
Com área superior a 3 mil quilômetros quadrados (km²), o Parque Estadual da Serra do Mar protege uma preciosa porção da Mata Atlântica.
Criado em 1977 e declarado patrimônio em 1985, o parque impediu que importantes recursos naturais fossem espoliados pela especulação imobiliária que se seguiu à construção da rodovia Rio-Santos (BR-101) e até hoje atinge fortemente a região. Para os antigos moradores da área, no entanto, a memória da instalação do parque nem sempre tem conotações positivas.
"Houve uma grande desapropriação de terras, que englobou, apenas no município de Ubatuba, por exemplo, cerca de 80% do território”, explicou Aline Vieira de Carvalho, professora dos programas de pós-graduação em História e em Ambiente e Sociedade da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Unicamp (Nepam).
De acordo com a pesquisadora, o impacto da criação do parque foi percebido de diferentes maneiras pelos moradores da região. “Alguns compreenderam que ele seria fundamental para a preservação do meio ambiente naquele espaço; mas outros se opuseram à sua existência, pois se sentiram drasticamente afastados de seus modos tradicionais de vida”.
Essa foi uma das conclusões da pesquisa “Memórias ambientais e rodovia Rio-Santos: patrimônio e fontes orais no litoral Norte de São Paulo”, conduzida por Carvalho com apoio da FAPESP. “Ficou claro que as questões patrimoniais não podem ser abordadas de forma simplista nem com decisões tomadas de cima para baixo”, afirmou a pesquisadora.
Carvalho enfatiza que a criação do parque foi muito positiva, como contraponto ao impacto causado pela construção da rodovia Rio-Santos e à especulação imobiliária que se seguiu.
“Foi uma iniciativa pioneira do Condephaat [Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico, da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo] e uma grande conquista. Porém, sua implantação é até hoje narrada como não tendo contemplado os interesses dos moradores locais, porque a concepção prevalecente era a de um parque sem seres humanos”, disse.
“Infelizmente, a partir dos dados da pesquisa, que trabalhou com uma rede de patrimônios materiais instalados na região do Litoral Norte de São Paulo, podemos dizer que temos optado, de maneira geral, por concepções patrimoniais que separam o ser humano da natureza”, afirmou Carvalho.
Segundo ela, há uma tradição no país de se pensar o patrimônio ora como apenas cultural ora como apenas ambiental. “Percebemos que tanto os discursos institucionais quanto as narrativas dos moradores consideram ‘patrimônio natural’ e ‘patrimônio cultural’ como coisas desconexas, sem levar em conta que as categorias ‘natureza’ e ‘ser humano’ não podem ser pensadas como realidades independentes”, ressaltou a pesquisadora.
Essa visão influencia fortemente o comportamento cotidiano, atuando como um fator de reprodução do uso desprecavido dos recursos naturais. “Por isso a memória ambiental é tão importante”, disse.
“Memória ambiental” foi exatamente o conceito que nucleou a pesquisa. “Ela é formada por narrativas acerca das relações entre os seres humanos e a natureza”, definiu Carvalho. “A memória de tais relações configura um referencial simbólico para nossas negociações cotidianas com o meio ambiente”.
É importante levar em conta que tais “memórias” são constituídas não apenas pelas lembranças das experiências vividas, mas também por tudo aquilo que é aprendido de diferentes maneiras, desde os relatos bíblicos sobre as relações entre o homem e a natureza até narrativas atuais veiculadas pelas empresas da mídia e do entretenimento.
“A hipótese que adotamos na pesquisa foi a de que o patrimônio define um eixo aglutinador dessas memórias. Nossa proposta, então, foi investigar as memórias ambientais vigentes no Litoral Norte do Estado de São Paulo tendo como referência os patrimônios existentes na região”, informou Carvalho. “Estávamos interessados tanto nos discursos oficiais e institucionais como naqueles que eram produzidos por moradores da região”.
Concepções de patrimônio
Carvalho afirmou que o grupo começou a entrevistar os moradores com o pressuposto de que a rodovia Rio-Santos, construída durante o regime militar, teria modificado a percepção do homem em relação ao contexto natural. “Conforme a pesquisa avançou, percebemos que, sim, a Rio-Santos havia mudado a percepção das pessoas, mas existiam também outros fatores, que não consideramos inicialmente”, disse.
Em ordem cronológica, esses fatores foram: a implantação da balsa São Sebastião-Ilhabela (1958); a catástrofe de Caraguatatuba, com numerosas vítimas, em decorrência de chuvas torrenciais e deslizamentos de terras (1967); a instalação do terminal da Petrobras em São Sebastião (1971); a criação do Parque Estadual da Serra do Mar (1977); e a duplicação da rodovia Tamoios (em andamento desde a década de 1970).
Como seria de esperar, tais fatores foram mencionados com ênfases variadas nos diferentes municípios. Assim, a criação do Parque Estadual da Serra do Mar, fortemente percebida pelos moradores de Ubatuba, quase não foi citada pelos de São Sebastião e Ilhabela, que focaram suas narrativas na instalação do terminal da Petrobras.
“Esses viram a instalação do terminal como algo que impactou a natureza, desconectou os espaços urbanos e mudou o panorama da cidade. Não era objeto da pesquisa saber se a chegada da Petrobras realmente causou esses efeitos. Mas, sim, detectar como essa chegada ficou registrada na memória. Isto é, como as pessoas a narraram para si mesmas”, afirmou a pesquisadora.
A ressalva é importante porque ajuda a precisar o objeto da pesquisa, que, tomando apenas como parâmetros os fatos objetivos, centrou seu foco investigativo na subjetividade. E favorece também o entendimento de como os mesmos fatos foram interpretados de diferentes maneiras de acordo com a inserção social dos entrevistados.
Assim, os antigos moradores da área desocupada para a criação do Parque Estadual da Serra do Mar compuseram uma narrativa desfavorável não pelo fato de o meio ambiente ter sido protegido. Ao contrário, pois o meio ambiente era a fonte de sustentação de seu antigo modo de vida. Mas por causa da forma como ocorreu a implementação do patrimônio e por alguns aspectos de sua gestão, explicou a pesquisadora.
“Vale acrescentar que muitas coisas mudaram em relação a esse cenário inicial, pois a criação do parque foi efetivada durante a ditadura militar brasileira, o que marcava uma gestão bastante específica e autoritária da coisa pública”.
“Já os representantes do setor imobiliário apresentaram um discurso totalmente diferente”, relatou Carvalho. “Neste caso, o parque foi considerado um empecilho por fugir da lógica capitalista de exploração do território, preservando uma área que, de outra maneira, teria sido destinada à construção de novos condomínios e outras formas de obtenção de lucro”.
Segundo a pesquisadora, o viés ideológico penetra também o discurso oficial, inclusive o amparado por critérios científicos. “É o caso da própria definição de patrimônio”, exemplificou.
“As definições oficiais sobrevalorizam as grandes construções físicas relacionadas a personagens ilustres ou a um suposto passado glorioso da região e subvalorizam expressões culturais das comunidades locais. No extenso rol de patrimônios do Litoral Norte paulista, a maioria esmagadora dos sítios é composta por igrejas e casarões senhoriais. Aldeias indígenas e remanescentes de quilombos não fazem parte da lista”, disse.
Uma recomendação resultante da pesquisa é a de que as pessoas relacionadas com determinados patrimônios ou sítios arqueológicos não sejam excluídas dos processos decisórios sobre essas áreas.
O grupo também defende uma abordagem mais complexa das relações entre cultura e natureza nas definições patrimoniais. “O patrimônio é uma poderosa narrativa, fluida e complexa, que pode estar cotidianamente ligado à vida das pessoas que se relacionam com ele”, disse Carvalho, ressaltando que ele pode ser compreendido como uma chave para mudanças e permanências culturais.
“Existe hoje, no meio acadêmico e científico, um grande debate sobre os graves conflitos existentes em áreas de preservação. Nossa proposta é a de que a definição e gestão de um patrimônio levem em conta as necessidades e opiniões das pessoas que vivem cotidianamente nesses locais. Se o processo decisório não se apoiar em um debate democrático, o patrimônio será sempre visto por essas pessoas como um problema, um empecilho. E não haverá qualquer empenho em protegê-lo ou em interagir com o processo de gestão patrimonial”, concluiu Carvalho.
Fonte: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
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